RAIOS-X E RAIOS-𝛾 EMITIDOS POR RAIOS INTRA-NUVEM E NUVEM-TERRAClayton Garcia da Silva
Palavras-chave: raios, raios-𝛾, raios-X, TGF, intra-nuvem, nuvem-terra
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A atmosfera terrestre, além de palco de fenômenos meteorológicos intensos, como tempestades, também é local de processos físicos extremamente energéticos. Entre esses processos, os raios atmosféricos se destacam por envolverem descargas elétricas capazes de gerar campos intensos e radiação em diferentes faixas do espectro eletromagnético.
Figura 1: Ilustração da atmosfera terrestre.
Fenômenos atmosféricos de alta energia, como os raios, têm sido objeto de estudo por séculos. Os raios são descargas elétricas intensas que ocorrem na atmosfera devido à separação de cargas entre nuvens ou entre nuvens e o solo, tradicionalmente estudados por suas emissões em radiofrequência e luz visível. No entanto, nas últimas décadas foi descoberta uma característica surpreendente: os raios também podem emitir radiação eletromagnética de altíssima energia.
Descobertas recentes revelaram que essas descargas também produzem partículas relativísticas e radiação de alta energia, tais como raios-X (com energias entre 10 keV a 100 keV) e raios-𝛾 (com energias acima de 100 keV), anteriormente considerados exclusivos de eventos cósmicos. Esse fenômeno conecta a física atmosférica à astrofísica, à física de altas energias e à geociência espacial, uma vez que radiações desse tipo eram associadas apenas a fenômenos extremos, como explosões solares ou supernovas.
Figura 2: Formação de raio.
Os raios são descargas elétricas atmosféricas que surgem a partir da separação significativa de cargas elétricas no interior de nuvens do tipo cumulonimbus. Essa separação cria um campo elétrico que, ao atingir um valor crítico, ioniza o ar e forma um canal de plasma condutor por onde flui a corrente elétrica que caracteriza o raio. As descargas podem ocorrer:
As descargas intra-nuvem são mais frequentes, mas as nuvem-terra são mais observadas por seu impacto direto em estruturas e seres vivos. Em ambas, o campo elétrico gerado pode ser intenso o suficiente para acelerar elétrons a velocidades relativísticas, condição fundamental para a emissão de raios-X e raios-𝛾.
Figura 2: Ilustração da formação de raios
Evidências recentes indicam que ambas as radiações são geradas por elétrons acelerados pelo campo elétrico existente dentro do canal do relâmpago e dentro da nuvem, respectivamente.
Essas emissões estão associadas a:
Durante a formação e propagação do raio, especialmente na fase do líder escalonado (notadamente nas descargas negativas), elétrons livres são acelerados por campos elétricos intensos. Esses elétrons de alta energia colidem com moléculas do ar, perdendo parte de sua energia na forma de radiação de frenagem (bremsstrahlung), o que gera fótons com energia na faixa de raios-X (keV) e, em casos mais extremos, de raios-𝛾 (MeV).
Esse processo é responsável por emissões de curta duração, com pulsos intensos, mas que rapidamente se atenuam pela absorção atmosférica. Enquanto os raios-X são detectáveis apenas próximos ao canal de descarga, os raios-𝛾 vindos de dentro das nuvens possuem maior capacidade de propagação e podem ser observados até mesmo do espaço.
Quando a energia dos elétrons supera dezenas de keV (quiloelétron-vols), a radiação gerada atinge níveis detectáveis por sensores especializados. Em certos casos extremos, os fótons alcançam energias da ordem de MeV (megaelétron-volts), configurando o que se conhece como:
Os Flashes de Raios Gama Terrestres (Terrestrial Gamma-ray Flashes - TGFs) são breves pulsos de radiação gama detectados a partir do espaço e associados a relâmpagos, especialmente intra-nuvem. Satélites como Fermi, AGILE e ASIM identificaram esses eventos na troposfera superior, geralmente durante tempestades tropicais.
[“Como os raios gama experimentam uma rápida atenuação na atmosfera, foi inicialmente a hipótese de que a fonte de TGFs era sprites, que também estão associados a tempestades e relâmpagos e têm altitudes que atingem cerca de 80 km. No entanto, mais tarde foi encontrado pelo RHESSI que a maioria dos TGFs se origina de altitudes de nuvens de trovolo, 15 a 21 km, e não de sprites”]
Segundo estudos como Østgaard et al. (2008), os TGFs ocorrem predominantemente em regiões tropicais e apresentam altíssima intensidade, podendo liberar fótons com energia acima de 20 MeV. Durante uma descarga, elétrons podem ser acelerados a energias extremamente altas (MeV) por campos elétricos intensos. Quando esses elétrons colidem com átomos de nitrogênio e oxigênio, ocorre:
O furacão Manuel lançou um TGF em 15 de setembro de 2013, logo após atingir o estado mexicano de Michoacán (imagem ao lado). Manuel disparou um segundo TGF no dia seguinte. Os símbolos magenta marcam a localização dos TGF nas imagens de satélite da tempestade.
Figura 3: Mecanismo de Bremsstrahlung (Fonte: ResearchGate)
Para explicar eventos de TGF, inicialmente foi proposto que os elétrons secundários gerados por raios cósmicos podiam ser influenciados pelo campo elétrico de uma tempestade. Contuto, tanto os aspectos teóricos quanto experimentais desse problema foram amplamente debatido pelos pesquisadores. Porém, Gurevich et al. (1992) aponta que:
[Um novo interesse é estimulado pela observação de precursores de raios que surgem como aumentos acentuados na intensidade dos raios X [5,6]. Os cálculos consistentes da geração de raios X por McCarthy e Parks [7] mostram que os raios cósmicos secundários não podem fornecer o nível medido de intensidade dos raios X, mesmo considerando o impacto máximo proveniente do campo elétrico da tempestade.]
No entanto, no mesmo artigo, Gurevich et al. esclarece que:
[“No entanto, as teorias existentes não consideram a possibilidade de um aumento do número de elétrons descontrolados, como o de uma avalanche, levando à ruptura elétrica da atmosfera. Este artigo é dedicado à investigação desse assunto. Posteriormente, mostraremos que esse fenômeno aparentemente determina o valor limite do campo elétrico médio em uma tempestade, bem como a emissão de raios X gerada durante o período de pré-condicionamento.”]
Assim, foi proposto por Gurevich (1992) um segundo mecanismo, que envolve a chamada Avalanche Relativística de Elétrons em Fuga (Relativistic Runaway Electron Avalanche – RREA), possivelmente com reforço por feedback relativístico de pósitrons e fótons. Segundo esse modelo, elétrons secundários, originados por raios cósmicos, podem ser acelerados continuamente em campos elétricos suficientemente fortes, gerando uma cascata de elétrons relativísticos. Esses, por sua vez, produzem fótons-𝛾 ao interagir com o ar, como abordado por Østgaard et al. (2012):
[“... foi sugerido que os flashes gama terrestres (TGFs) são produzidos em altitudes muito baixas. Por outro lado, alguns espectros do Experimento de Fonte Transiente e Explosiva (BATSE) mostram fluxos não absorvidos de raios X na faixa de energia de 25-50 keV, indicando uma altitude de produção mais alta. Para investigar isso, desenvolvemos um código de Monte Carlo para a propagação de raios X pela atmosfera. As características mais importantes observadas nos espectros modelados são (1) um corte de baixa energia que se move para energias mais baixas à medida que os TGFs são produzidos em altitudes mais altas, (2) um corte de alta energia que se move para energias mais baixas à medida que os TGFs são observados em ângulos zenitais maiores, e (3) atrasos de tempo são observados para TGFs produzidos a ≤ 20 km (e alguns a 30 km) de altitude quando observados em ângulo zenital maior do que o meio-ângulo que define o feixe de raios X isotrópico inicial. Este é um efeito Compton puro.”]
Esse processo explica os chamados Flashes de Raios-𝛾 Terrestres (TGFs – Terrestrial Gamma-ray Flashes), que são pulsos de radiação-𝛾 com duração inferior a 1 milissegundo, detectados por satélites em órbita terrestre, como explicado Dwyer et al. (2012), pois nesses fenômenos os elétrons ganham energia suficiente para escapar da atmosfera.
[“Os flashes de raios gama terrestres (TGFs) são explosões intensas e multi-MeV de raios gama que se originam dentro da atmosfera da Terra. Eles foram relatados pela primeira vez por Fishman et al. [1994] usando dados de CGRO/BATSE. Foi quase imediatamente reconhecido que os TGFs estão associados a tempestades, e mais tarde foi determinado que TGFs estão associados a flashes individuais [Inan et al., 1996]”]
Figura 4: Detecção de TGF (Fonte: ESA)
As descargas associadas a líderes negativos são indicadas como principais fontes de TGFs, com aceleração local de elétrons próximos ao líder. Modelagens e observações mostram que a maior parte desses eventos está associada à propagação de líderes positivos intra-nuvem.
A maioria dos TGFs é gerada por raios intra-nuvem, especialmente entre regiões negativas da base da nuvem e regiões positivas intermediárias. Satélites como Fermi, RHESSI, AGILE e ASIM detectaram TGFs associados a essas descargas verticais, nas quais os elétrons são acelerados ao longo de campos intensos e bem organizados, alinhados verticalmente, o que favorece a produção de elétrons relativísticos, favorecendo a emissão de fótons com energia superior a 20 MeV e, por consequência, radiação 𝛾.
Embora os TGFs estejam ligados principalmente a raios intra-nuvem, os raios nuvem-terra também produzem emissões de alta energia, especialmente na forma de raios-X de curta duração.
Figura 5: Raios intra-nuvem (Fonte: NASA)
Embora menos frequente, a produção de raios-𝛾 também pode ocorrer em raios nuvem-terra. Contudo, esse tipo de descarga está principalmente associado à emissão de raios-X, com menor energia, de curta duração, especialmente durante os estágios iniciais da propagação do “líder”. Esses pulsos são observados durante os estágios iniciais do líder descendente, especialmente em descargas negativas, e apresentam energias típicas entre 30 keV e 300 keV.
Essas emissões são geralmente detectadas em solo por sistemas de cintiladores ou detectores semicondutores, muitas vezes sincronizados com sensores ópticos e eletromagnéticos. A radiação é emitida em pulsos breves, com duração inferior a 1 microssegundo, frequentemente com a emissão de pulsos de radiação X sincronizados com os degraus da progressão do líder descendente, tal como apresentado por Dwyer et al. (2012).
Os estudos indicam que, em certas condições, o campo elétrico local excede o campo de avalanche de elétrons, permitindo que elétrons da radiação cósmica secundária sejam acelerados continuamente. Essa aceleração resulta em emissões breves mas intensas, como demonstrado por Kochkin et al. (2015), que também apontam a importância da morfologia dos canais do líder na intensidade e orientação da emissão. Estudos laboratoriais indicam que a geometria do canal do raio influencia significativamente a intensidade e a direção da emissão de raios-X.
O processo pode ser potencializado por campos elétricos locais de até centenas de kV/m, e a simulação desses campos indica que os líderes negativos são mais eficientes na geração de raios-X do que os positivos.
[“Eack et al. [1996a, 1996b], usando detectores de NaI em balões de sondagem, mediram um fluxo de raios X enquanto os balões estavam dentro e acima de nuvens de tempestade. A emissão de raios X durou mais do que a duração típica de um relâmpago, então concluiu-se que o relâmpago provavelmente não era a única causa para a emissão de raios X. Em vez disso, o fluxo de raios X foi atribuído ao campo elétrico em grande escala dentro da tempestade [Wilson, 1925; McCarthy e Parks, 1992]”.]
Os estudos indicam que, em certas condições, o campo elétrico local excede o campo de avalanche de elétrons, permitindo que elétrons da radiação cósmica secundária sejam acelerados continuamente. Essa aceleração resulta em emissões breves mas intensas, como demonstrado por Kochkin et al. (2015), que também apontam a importância da morfologia dos canais do líder na intensidade e orientação da emissão. Estudos laboratoriais, indicam que a geometria do canal do raio influencia significativamente a intensidade e a direção da emissão de raios-X.
O processo pode ser potencializado por campos elétricos locais de até centenas de kV/m, e a simulação desses campos indica que os líderes negativos são mais eficientes na geração de raios-X do que os positivos.
Figura 6: Raio nuvem-terra (Fonte: NASA)
Desde a década de 1990, esse campo de estudo vem desenvolvendo-se rapidamente, impulsionado pela detecção de emissões de alta energia por satélites e sensores terrestres. A investigação desses processos tem implicações importantes tanto para a ciência fundamental quanto para a segurança de sistemas tecnológicos, como os utilizados na aviação.
A detecção dessas emissões além de serem feita por sensores terrestres, também ocorrem por satélites equipados com detectores de alta energia em órbita baixa, e detectam TGFs propagando-se da atmosfera terrestre para o espaço. Em solo, redes como o RELAMPAGO, o LEONA (Lightning Electromagnetic Observations in the North Argentina) e iniciativas no Brasil como o Projeto ELAT têm contribuído para o entendimento das correlações entre raios e emissões de alta energia.
A detecção das emissões de alta energia associadas aos raios é feita por meio de:
Esses sistemas trabalham de forma coordenada para correlacionar a emissão de radiação com o desenvolvimento temporal dos raios, o que tem permitido avanços significativos na compreensão desses fenômenos.
Além disso, radiotelescópios e sensores ópticos de alta velocidade são utilizados para correlacionar a emissão de radiação com a evolução temporal do raio.
O Monitor de Interações Atmosfera-Espaço (ASIM) na Estação Espacial Internacional deu aos pesquisadores uma nova compreensão de como os raios são criados e como as tempestades podem afetar a atmosfera e o clima.
As primeiras medições da instalação, que voa 400 km acima da Terra, nos arredores do laboratório europeu Columbus, revelam como os chamados "flashes gama terrestres" se formam na atmosfera. Os flashes ocorrem em conexão com raios e tempestades e são rajadas curtas de raios X e gama de alta energia.
Pesquisadores da equipe científica também receberam medições sem precedentes mostrando uma grande quantidade de relâmpagos azuis acima de nuvens de tempestade.
Figura 7: Infográficos do caçador de tempestades ASIM.
A constatação de que relâmpagos podem emitir radiação de alta energia revela que a atmosfera terrestre atua como um verdadeiro acelerador de partículas natural. Isso amplia o escopo da física atmosférica e a conecta à física de altas energias, tradicionalmente aplicada a ambientes espaciais e laboratoriais.
Tais descobertas desafiam a visão tradicional sobre descargas elétricas e ampliam as fronteiras entre meteorologia, física de plasmas e física de partículas. Além disso, esses eventos podem representar riscos à aviação, especialmente em voos em grandes altitudes, onde os efeitos dos TGFs sobre eletrônicos e instrumentação ainda estão sendo investigados.
Além do interesse científico, esses fenômenos têm implicações tecnológicas relevantes:
Recentemente, como analisado por Neves et al. (2019), sistemas de detecção terrestres no Brasil confirmaram a emissão de raios-X por raios em condições naturais, reforçando a importância de estudos in situ e de redes coordenadas de observação. Pesquisas como essas reforçam a necessidade de integrar observações locais e espaciais para compreender plenamente os efeitos e os mecanismos por trás dessas emissões e, inclusive estabelecer como:
Do ponto de vista científico, esses fenômenos servem como laboratórios naturais para estudar:
Figura 8: Fenômenos atmosféricos energéticos (Fonte: ESA)
A descoberta de que os raios atmosféricos emitem raios-X e raios-𝛾 revolucionou a compreensão dos processos elétricos na atmosfera, mostrando que são muito mais complexos e energeticamente intensos do que se pensava. Raios intra-nuvem, em especial, estão associados à emissão de TGFs (raios gama terrestres) detectados até por satélites em órbita, enquanto raios nuvem-terra geram emissões de raios-X detectáveis em solo.
A existência dessas radiações evidencia que a atmosfera da Terra é um ambiente capaz de gerar partículas relativísticas, aproximando os estudos atmosféricos da física de altas energias. Esses fenômenos, antes considerados improváveis, revelam que a atmosfera pode produzir processos semelhantes aos observados em ambientes cósmicos.
Além de contribuírem para a física fundamental, esses eventos podem influenciar a ionização da ionosfera, interferir em comunicações e representar riscos à aviação, especialmente em altitudes elevadas, onde a incidência de TGFs é maior. O avanço de sensores terrestres e satelitais tem ampliado a compreensão desses processos, tornando o estudo da emissão de radiação de altíssima energia por raios um campo interdisciplinar promissor, com aplicações em meteorologia, física atmosférica, ciência espacial e segurança tecnológica.